sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Ao Meu Belo Pai Ex-Imigrante

Pai:
as maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época da colheita
enquanto soltas já estão as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata
sinceridade filial não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

E agora
para além do meu antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster Keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
ante os meus sócios Bucha e Estica no ecrã todo
e para sempre no zinco um tap-tap de cacimba no chão
a minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - «Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém.»

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Aljezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha única e bela nação do Mundo
onde minha Mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e o teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura do velho emigrante numa cama do hospital
colono toa pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o «Trinta-diabos» de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de «bicicleta» à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas dos leões do Circo Pagel
nódoas de caju na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no xitututo Harley Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen O’Sullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme Tarzan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o «Cascabulho» para ti
o Sontinho para a minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.

Pai:
Ainda me lembro do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!

E choro-te
chorando-te mais agora que te conheço
a ti, meu Pai, vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.

E revejo os teus longos desejos no dirlim-dirlim da guitarra
ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira-e-zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.

Pai:
Afinal tu e a minha Mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
o Tarzan agente inglês disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofismas nas covinhas da face
e eu também é que mudámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidas sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronze
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das húmidas
ancas sinuosas dos rios.

E nestes versos te escrevo, meu Pai
por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
quase revelada nessa carta elegia para ti
meu resgatado primeiro extra-português
número UM Craveirinha moçambicano!

(José Craveirinha)

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